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Terapeuta de mim mesmo, um forasteiro, estrangeiro e aventureiro da existência que escolheu alguns caminhos e o veículo certo para percorrer estes caminhos.

sábado, 23 de abril de 2011

Cabelo, o camelo da Índia

(Para o meu cunhado Guilherme)

A proposta feita estava quase se concretizando, mas ele não conhecia nada de camelos, a princípio achou que era uma brincadeira de seu querido tio, porém era realmente sério.

Dois anos antes, a idéia de ir para a Índia foi e divulgada para toda família, em um almoço com todos os membros. Aquele ato foi uma loucu
ra, uma afronta, para uma família de respeito e tradicional, todos se calaram e não levaram a sério tal declaração, porém pairava no ar certo clima que se instalou no recinto, um silêncio assustador, secretamente, todos naquela mesa pensavam no comentário de segundos atrás. O silêncio foi se tornando perturbador, podia escutar o eco dos pensamentos mais íntimos daqueles que não conseguia manter o segredo trancado, aumentando assim os ruídos que vinham dos dentes nos talheres que se tocavam através de gestos repetitivos de quem perdeu o apetito.

O apetite foi perdido e não seria encontrado facilmente, foi quando por de trás de um deserto de julgamentos e analises, ouviu se uma voz real, não a imaginação de um recinto silencioso, era de um certo tio que acertadamente não conseguiria trancar o silêncio por muito tempo, ele era bem diferente das pessoas que estavam sentados ao redor daquela mesa farta, e sem interesse na fartura, todos pararam para ouvir o que aquela voz vinda do deserto estava dizendo:

-Puxa! Gostei, vou te dar um camelo de presente.

Sempre que pairava uma seriedade, ele vinha alegre e quebrava a atmosfera séria, difícil era saber se ele falava sério ou não, um enigma que acabava levantando o moral de todos, em busca do apetite perdido.


Quase dois anos se passaram e o dilema do camelo continuou, já estava do tamanho de um elefante, ainda bem que era um camelo. No Brasil, ele não compraria camelo algum, na Índia, sim. Ele sabia que teria de ir a algum mercado de camelos, uma árdua tarefa, para alguém que apenas viu camelos na televisão ou no zoológico, ainda assim poderia confundir com dromedário, quem teria duas corcovas, camelo ou dromedário? Ou seria melhor esquecer a estória toda de camelo?


Não conseguiria esquecer a estória, pois estava próximo da viagem, alguns meses o separava da viagem e do sono perdido, nas longas noites de insônia, não se contava mais carneirinhos, agora contava-se camelinhos.


Faltava um mês para a viagem se realizar, foi quando seu querido tio faleceu, subitamente sem avisar que estava de partida para uma outra viagem, um baque para todos, foi uma tamanha tristeza que se abateu que ele quase desistiu da sonhada viagem, pensou muito e decidiu ir mesmo assim, pois seu tio tinha lhe incentivado desde o começo, iria juntamente com a memória do tio.


Agora faltava semanas, estava quase pronto para partir rumo ao oriente, a tristeza do tio foi sendo substituída pela ansiedade da viagem, seu tio ás vezes ecoava em sua memória.


Faltando agora, seis dias, quando veio uma notícia por meio de um oficial de justiça, uma herança deixada pelo seu querido tio, ele tinha lhe deixado como herança, um camelo de presente, na Índia. Foi um espanto geral na família, quase um escândalo, mesmo depois de morto o tio zombava de todos, não apenas no dia de seu enterro, quando podia-se observar um certo sorriso maroto, até chamaram o funcionário para corrigir aquele sorriso zombeteiro e mesmo o funcionário não poderia suspeitar o motivo daquele sorriso, meses depois, as pessoas entenderia o porquê do sorriso, mais uma vez estava zombando de todos e deixando o sobrinho assombrado e feliz.

No documento trazido pelo oficial de justiça, dizia respeito de uma compra feita na Índia, por um amigo de Marrocos que tinha contatos com pessoas na Índia e por sua vez compraram o camelo, uma longa jornada para se comprar um camelo, que agora lhe pertencia, dois anos atrás era pura diversão, agora era real.


A viagem foi cansativa, chegando bem e salvo ao pais dos marajás, dos miseráveis, dos homens santos, da miséria e da riqueza, tanto material, quanto espiritual, no oriente, na Índia. Um pais, não para entender e sim para viver, um pais de montanhas e desertos e principalmente de camelos.


O camelo era e continua sendo reverenciado pelas famílias que vivem no deserto, o motivo é que nos tempos de guerra, se cantava e agradecia aos camelos por trazerem os homens para o lar e vivos.

Antes de ver o seu presente, ele parou em Nova Delhi, atual capital da Índia, cidade cosmopolita e de embaixadas, ficou em uma região mais tranquila e arborizada, um pouco distante do caos. Queria aos poucos se habituar ao ritmo frenético de um pais de mais de 1 bilhão de pessoas.

Depois de uma semana em Nova Delhi, partiu para Pushkar, cidade onde se vende camelos, ver o tão aguardado presente, o camelo.


Pushkar tem um ritmo, tão intenso quanto em qualquer lugar na Índia, muito colorido e musical, pode-se observar o olhar milenar de cada habitante, penetrando a alma dos menos avisados, um choque cultural, tanto no tato de sentir o espirito milenar, quanto no paladar de especiarias, picantes.


A alimentação nesta região é um capitulo a parte, dando ainda mais vida nesta saga, cada refeição oferecida era uma festa para aos sentidos, de primeiro a visão, considerada também o senhor dos sentidos, os olhos se espantavam e se admiravam com o colorido dos talis (pratos) todos ricamente decorados, em um arranjo de detalhes se assemelhando a uma mandala que convidava o outro sentido, não menos menor nesta escala, o tato, que vinha com um pouco de relutância para desfazer a mandala, as mãos tinham que ser purificadas e o coração aberto, quando o coração se abriu feito uma porta ao êxtase, o olfato se embriagava ao sentir o aroma, servindo de ponte em uma ligação, das mãos para boca, enriquecendo ainda mais o paladar que transportava a alma em uma nostalgia não vivida, a um tempo de encantos e magia. As iguarias oferecidas pelos nativos, que os sentidos se deixavam levar em uma viagem, se aprofundou mais nos cinco sabores clássicos, como o doce, o salgado, depois vindo do fundo o azedo e o amargo, para não deixar dúvida, na sequencia vinha arrebatando o picante, subindo o calor e escondendo um sabor enigmático, o adstringente. Completa a experiência sensorial, uma maior ainda estava por vir, a extra-sensorial, levando mais perto do panteão de deuses da Índia.


Depois de achar que tinha tido uma experiência mística, de todos os sentidos e outros mais profundos, pensou ele - que poderia vir? Nada tinha começado, ou apenas uma ponta do véu se levantou, muito teria por vir, principalmente a sua herança, o camelo prometido.


Na feira foi procurar o senhor Shankar, um senhor proprietário de camelos, vindo de uma família da casta de comerciantes e uma sub-casta de comerciantes de camelos, a família tinha convívio íntimo com camelos, diziam que sabiam até os pensamentos de seus afortunados camelos, era a familia mais respeitada da região, e estava nas mãos deste senhor o futuro camelo e companheiro de viagem.

Estes animais que a primeira vista são simpáticos e pacatos, vivem em média de 25 a 35 anos, eles são uma das principais fonte de renda para os nativos locais, principalmente quando ocorrem as feiras que reúne pessoas de toda a Índia e do oriente próximo. Os camelos são muito resistentes ao deserto e são excelentes companheiros, mas nem todos são simpáticos e pacatos, são também temperamentais, ao olhar para uma pessoa, eles demonstram o afeto, se eles gostam ou não gostam da pessoa, eles desenvolveram uma maneira muito peculiar de mostrar a simpatia pela pessoa e ao mesmo tempo, acaba sendo uma defesa usada quando se sentem ameaçados.


Ele não conhecia nada de camelos, alguma matéria ou curiosidade lida, mas na prática como seria? Seria um desafio, ele estava tão longe de seu país e com uma herança quase em suas mãos, não recuaria, no fundo queria um companheiro de viagem, mas um camelo?! Um companheiro como este, seria bem diferente dos companheiros convencionais de viagens, algo inusitado, muitos camelos seriam, talvez melhor que muitos companheiros humanos.


Foi difícil encontrar o “tal” do Shankar, perguntando para um e para outro, muitos não entendiam o inglês e o nome Shankar é bem comum naquelas regiões, sabia também que o seu sobrenome é Singh, mas Singh é o sobrenome de todos naquela região, uma espécie de imensa família, seria mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha que encontrar o Shankar. Não foi fácil, mas de tanto perguntar, e insistir o camelo passou pelo buraco da agulha, foi assim que ele chegou ao senhor Shankar. Tudo poderia ser mais fácil, mas a vida é caprichosa e tem lá os seus motivos.


Senhor Shankar é um senhor de muita simpatia, além de ser um comerciante nato, assim que se conheceram, o senhor Shankar lhe ofereceu um chai, um preparado de chá preto com leite e especiarias, para mostrar o quanto estava cortês com seu cliente. Depois de tomar o chai, conversaram sobre a vida, sobre a Índia e Brasil, suas semelhanças e diferenças, quando chegou a hora de conhecer o mais novo companheiro, lembrando que ter um camelo, não seria nada igual a ter um cachorrinho ou um gatinho, era um camelo, um animal imenso. Na conversa, ele pediu para o senhor Shankar ensinar um pouco mais sobre este animal, saber como manter e dar ordens, ele teria o tempo necessário para aprender o essencial.


Ele foi ver os camelos disponíveis e teria a tarefa de escolher um, aquele que mais simpatizasse consigo, tinha que vir da alma, uma intuição, pois não teria outra maneira.


-Não sei qual escolher, pois todos são parecidos, foi quando viu um, no canto bem sossegado e mascando uma espécie de goma.


O bicho estava sentado e ao vê-lo levantou-se, primeiramente as patas de trás para num solavanco subir a parte dianteira, sentiram uma empatia grande um pelo outro, ou parecia isto, ao vê-lo, achou muito engraçado a sua maneira de ficar mascando, e enchendo a boca, no primeiro momento sorriu e para no segundo momento sentir um puxão, sem entender nada, viu o camelo dar uma grande cusparada, o animal estava se preparando enchendo a boca com uma baba gosmenta e de aroma nada agradável, poderíamos dizer, um fedor insuportável, esta é a maneira peculiar dos camelos demonstrar o quanto não gosta das pessoas, naquele momento ele não era querido, se o camelo acertasse o seu novo amigo, teria ele que jogar fora as roupas e tomar um banho, mesmo assim o cheiro fétido teria ficado por uns dias.


Senhor Shankar, foi solícito ao ajuda-lo e foi logo mostrando um outro camelo, talvez um pouco mais amistoso, mas o desfio estava lançado, serio o próprio que ele ficaria, senhor da cusparada certeira, senhor da boa mira. Logo lhe veio o nome do camelo – Cabelo, o camelo.


Nos primeiros dias deixou Cabelo, o camelo, junto com os outros, visitando e familiarizando com o animal rebelde, sempre que Cabelo, o camelo olhava e mascava, ele ficava esperto e saia da frente, eles teria que passar mais horas juntos, e cada vez mais chegando perto, a cada visita, conquistando a confiança do bicho.


Com o passar do tempo, ele e o Cabelo, o camelo, foram ficando mais chegados, mesmo o animal tendo recaídas, ou vontade de dar cusparadas, ele sempre se esquivava da mortal baba, estava cada vez mais ligeiro.


Depois de alguns dias de adaptação e convívio, os dois deram o primeiro passeio, ele já tinha passeado com outros camelos, aprendendo a arte da montaria destes imensos animais. O que mais impressionava nesta relação, era que quando ele olhava para o Cabelo, o camelo, via o tio querido, talvez o motivo de ele estar vendo o tio, era que o tio foi o responsável pela aproximação dos dois, era a ponte entre ele e o Cabelo, o camelo. Neste passeio, Cabelo, o camelo, relutava em caminhar, até tentava morde-lo sem êxito, tentava cuspir, sem êxito, mas andando do lado de outros camelos, foi aprendendo como ser uma montaria e não criar problemas.


Neste primeiro passeio teve um incidente. Quando ele relaxou, Cabelo, o camelo, aproveitou a situação e partiu em disparada, Sankar que estava um pouco a sua frente não viu quando Cabelo, o camelo, levando ele, se foram para o mais além do deserto, quando Sankar percebeu foi tarde, logo a noite caiu, parecia uma cortina, com se a natureza apagasse a luz do sol.


Estavam os dois perdidos no deserto, o terror lhe veio, mas teria que confiar no animal que se rebelara, essa era hora de ser mais companheiro, mas Cabelo, o camelo corria muito até que ele caiu da montaria e desmaiou. Foi acordado na manhã seguinte sentindo um cheiro estranho, era uma gosma, baba fétida, era Cabelo, o camelo dando umas lambidas, voltara para acordar o amigo, sentira a falta do companheiro, selando definitivamente a amizade entre os dois, uma dupla inseparável. Ele levantou logo e com uma cara de azedo, por causa do cheiro. Subiu no Cabelo, o camelo, deixando que o seu companheiro o guiasse, não teria outra opção, senão confiar, agora ele estava de mãos atadas e a confiança seria a melhor solução, estava aprendendo esta lição em pleno deserto e de um camelo, mas não de um camelo qualquer, era Cabelo, o camelo, que era o reflexo do tio.


O animal se tornara um raio e de volta para a cidade, os dois foram recebidos com festa, pois o senhor Sankar disponibilizou alguns homens para procura-los e alertou toda a cidade sobre o desparecimento, e quando os dois voltaram, toda a cidade jogaram flores e aplaudiram, e com muita pompa, os dois desfilaram orgulhosos pela cidade, que os receberam como heróis.


A saga continua...